Livro divulga relação de indígenas com plantas medicinais
Narrativas sobre sete etnias do Norte, Centro e Sul do Brasil com informações acerca do uso de plantas medicinais estão no livro Jardins da história: medicinas indígenas, a mais recente obra apoiada pelo ObservaPICS/Fiocruz, lançada dia 5 de julho. A publicação em formato e-book, escrita em português e francês, com ilustrações e em acesso aberto por meio do Arca Dados Fiocruz, é resultado de um projeto de extensão do Laboratório de História, Saúde e Sociedade da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A iniciativa usa a contação de histórias e experiências sensoriais respeitando as cosmovisões e ancestralidade de povos indígenas.
As autoras, a especialista em história da saúde Renata Palandri Sigolo, do Departamento de História da UFSC, e a médica e antropóloga Adriana Strapazzon transcreveram o conteúdo e as vivências das oficinas realizadas com alunos da universidade e moradores do entorno da instituição para divulgar conhecimentos indígenas. Nesses encontros, o público era convidado a procurar no Jardim Botânico de Florianópolis e no Horto Didático de Plantas Medicinais do Hospital Universitário da UFSC espécies apresentadas previamente em cartelas com textos e desenhos, tudo permeado por contação de histórias. As informações sobre as plantas apresentadas nas oficinas e reproduzidas no livro foram extraídas de bibliografia selecionada, referente a diferentes povos aldeados, e também captadas diretamente de indígenas. “Duas etnias, Kaingang e Guarani, participaram de um roteiro das oficinas e também contribuíram com relatos”, explica Renata Palandri Sigolo.
Renata e Adriana contam no livro como era a dinâmica nas oficinas: “O momento em que nos encontrávamos à volta de uma planta medicinal também era a ocasião para a troca de saberes. Convidávamos a todos para avaliar a experiência por escrito e pelos testemunhos orais. Percebíamos que a imagem do ‘índio genérico’ aprendida na escola e por meio da mídia se desvanecia para dar lugar ao encantamento em descobrir que há centenas de etnias indígenas no Brasil e que nosso encontro só convidava a descobrir um pouquinho de sete delas”.
Segundo as autoras, o livro foi escrito em formato de contação de histórias para preservar a oralidade do conteúdo partilhado nos momentos de cada oficina com o público não indígena do projeto, oralidade essa utilizada pelos povos indígenas na transmissão de conhecimento entre gerações.
Jardins da história traz ensinamentos e contextos de vida dos povos Ka’apor, Huni kuin, Wajãpi, Yanomami, Baniwa, Guarani e Kaingang. Sobre os Ka’apor, por exemplo, as autoras escrevem: “habitavam próximo à região onde hoje encontramos os Wajãpi, no Sudeste do Pará. No século XIX, por conta da expansão luso-brasileira em direção ao lugar de morada deles, os Ka’apor se deslocaram e terminaram chegando ao Maranhão, à beira do rio Turiaçu. Hoje eles habitam a Terra Indígena Alto Turiaçu (…) essa terra tem sido fragmentada, como parte de um processo que tem se intensificado, o de comer as terras indígenas pelas beiradas. Vai-se adentrando, destruindo floresta, ocupando o território, vendendo-o para a grilagem e aos poucos reduzindo-o de fora para dentro, colocando em risco a vida das Terras Indígenas. (…), isso interfere no adoecimento desses povos”. E em seguida apresentam três plantas utilizadas por eles, como “Ita-mirá” (quebra-pedra), que tem como nome científico Phyllanthus urinaria, “utilizada para tratar pedras (ita) nos rins e outras infecções renais”.
Na live de lançamento do livro, promovida pelo ObservaPICS no Youtube, a professora Renata testemunhou a dificuldade, na rotina acadêmica, para quebrar a ideia de que só há uma maneira (a biomédica) de compreender saúde e doença. Adriana completou: “O papel da universidade é romper os abismos, promover o conhecimento para todos e com várias epistemologias”. O professor Sandor Bringmann (UFSC) observou: “A publicação ressalta o protagonismo dos conhecimentos indígenas. É um projeto desenvolvido com os povos indígenas”, Para ele, o significado torna-se mais importante num “momento em que vivenciamos ameaças ao meio ambiente e às populações indígenas”. Esse tipo de projeto, na sua visão, contribui para informar a sociedade sobre a cultura indígena e o livro deve auxiliar educadores, nas escolas, no âmbito de um currículo mais amplo.
A bióloga doutoranda em clínica médica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Kellen Natalice Vilharva Guarani Kaiowá (foto à direita), destacou a qualidade do conteúdo, a forma de apresentação e todo o cuidado com que o projeto que deu origem à publicação foi conduzido: “Fiquei muito encantada com a sensibilidade das autoras em respeitar o que muitas vezes é desrespeitado dentro das universidades (…) Na academia e na biomedicina, focam na parte fisiológica, química, na parte dos ensaios. Tenho sentido desde o mestrado a dificuldade em ser escutada e fazer ser respeitada a ancestralidade que não há como separar dos estudos sobre as plantas. Minha pesquisa é com o cedro, uma entidade sagrada para o meu povo (no Mato Grosso do Sul), e não pelos componentes químicos da casca e da folha. No texto a seguir Kellen escreve sobre a importância dos saberes indígenas