O sociólogo e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicam) Nelson Filice de Barros (foto abaixo/ObservaPICS) fez uma análise, a pedido do ObservaPICS/Fiocruz, dos 18 anos de implantação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS, completados na última sexta-feira (3 de maio). Nessa entrevista ele fala de avanços e de desafios, chama a atenção para o pouco exercício de interculturalidade na prática dos serviços de saúde e para o perfil semelhante entre profissionais e usuários das Pics, predominantemente feminino, branco e pardo, com escolaridade superior à média nacional e com mais de 40 anos. Um dos respeitados especialistas no assunto, o professor Nelson Filice coordena o Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas (Lapacis), na Unicamp, onde desenlvove projetos com foco no SUS. Ele também integra o Conselho Editorial do Boletim Evidências, do ObservaPICS/Fiocruz.

 

 OBSERVAPICS – Como avaliar o estágio atual da PNPIC, 18 anos após a publicação da Portaria 971 de 2006, do Ministério da Saúde?

 NELSON FILICE DE BARROSCelebrar 18 anos é importante, afinal tivemos muitas ameaças e sobrevivemos bem! Compreendo que a Portaria 971, apoiada no conceito de racionalidades médicas, inaugurou no SUS as experiências de interepistemicidade, pois pudemos identificar com precisão que a medicina não é uma coisa só em todas as sociedades e que coexistem diferentes racionalidades nos diferentes sistemas nacionais de saúde, o que aconteceu a partir de 2006 também no SUS. No entanto, considero que estamos num estágio muito próximo do que foi publicado em 2006, mesmo com a maioridade. Ainda nos apoiamos em portarias ministeriais, que não têm força de lei.  A Portaria de 2017 e depois a de 2018 mexeram na de 2006, mas, de fato, o que nós temos ali, com as portarias, é um exercício de ratificação do que a pesquisadora Madel Luz nos propôs nos anos de 1990, que foi a interepistemicidade. Quando Madel fala que existem diferentes racionalidades convivendo, ela opera para nós uma visão interepistêmica, quer dizer, existem diferentes epistêmes no campo da saúde no Brasil. Também considero que estamos muito próximos do estágio inicial da PNPIC porque quase não tivemos nesse período experiências interculturais, que dão movimento à interepistemicidade. Quer dizer, temos poucas experiências de intercambiar as práticas de uma cultura de cuidado com as práticas de outra cultura de cuidado. Possivelmente, a experiência intercultural que temos tido é da auriculoterapia. O que é a formação que tem sido ofertada?  É uma interculturalidade, em que a prática da cultura da Medicina Tradicional Chinesa é usada no conjunto das práticas da cultura de cuidado biomédico. Além da aurículo temos algumas práticas corporais, que são práticas de culturas de cuidado de diferentes racionalidades médicas que interagem de maneira marginal com as práticas de cuidado da racionalidade biomédica. Outro ponto que nos deixa próximos do início são as diretrizes que foram escritas na Portaria de 2006 e que não foram reescritas nas Portarias de 2017 e de 2018. Temos diretrizes de pesquisa, de ensino e de ofertas no SUS muito bem detalhadas para as práticas que foram preconizadas em 2006. Em 2017-2018 não há diretriz detalhando o trabalho das novas práticas terapêuticas incluídas. Desse ponto de vista, chegamos à maioridade da PNPIC, bem fundados no exercício de interepistemicidade, porém, com muito pequeno exercício de interculturalidade.

 OBSERVAPICS – Que mudanças poderiam ser feitas na legislação de 2006 e nas demais que levaram ao reconhecimento de 29 práticas como integrativas e complementares?

NELSON FILICE DE BARROSCompreendo que nesses 18 anos foi fundamental ter esse espaço de interepistemicidade e algum exercício de interculturalidade, mas o desafio hoje é, sobretudo, o desafio da construção de um paradigma para a inclusão. A construção desse paradigma não está no mesmo patamar de 18 anos atrás, pois algumas discussões ganharam espaço, visibilidade e importância depois de 2006. Uma delas está relacionado à decolonização ou descolonização. Nesse tempo, a visibilidade para os estudos de gênero cresceu. A visibilidade para os estudos de etnicidade no Brasil também cresceu. Todo esse ideário e as epistemologias do Sul, do Sul global, das cosmologias do Sul, tudo isso ganhou muito mais visibilidade do que nós tínhamos antes no debate da saúde coletiva e no debate do campo da saúde como um todo. Os debates sobre as cotas interraciais também ganharam muita visibilidade nesse tempo. São debates que eram muito marginais no momento da publicação da PNPIC em 2006 e que agora são centrais para o que a gente precisa fazer em relação às práticas integrativas. Inclusive, um projeto que está assentado na noção de justiça epistêmica, ou tentando sanar a injustiça epistêmica que se construiu com as experiências de uma supremacia biomédica, o que acontece no estado brasileiro é uma supremacia biomédica no campo da saúde. E isso tudo precisa ser incluído no debate sobre as Pics no SUS hoje, portanto, discutir práticas integrativas dentro desse arcabouço hoje é diferente, também, porque os movimentos sociais em torno desses conceitos produzem movimentos interculturais no fundamento interepistêmico da PNPIC.

 OBSERVAPICS – Dados do Ministério apontam o crescimento da oferta de atendimento das Pics no SUS. Sabemos, no entanto, das dificuldades de acesso, na regulamentação pelos conselhos profissionais e da disputa com a medicina convencional. Como qualificar e socializar a PNPIC?

NELSON FILICE DE BARROSA gente está escrevendo no Lapacis um texto sobre profissionais e usuários de práticas integrativas na atenção primária do SUS. E qual é a nossa surpresa? Existem muito mais informações sobre profissionais e serviços que ofertam Pics do que sobre usuários. E qual é uma outra surpresa? Se compararmos o perfil sociodemográfico dos profissionais que desenvolvem práticas integrativas no SUS com o dos usuários, percebemos uma semelhança no perfil dessas pessoas. É um perfil bastante similar. A maior parte são mulheres entre as profissionais e as usuárias. A maioria é branca ou parda, tanto entre as usuárias quanto entre as profissionais. A maior parte tem escolaridade superior à média da escolaridade brasileira entre as profissionais e as usuárias. A maior parte delas está acima de 40 anos. É muito curioso que o perfil das usuárias tenha uma semelhança grande com o perfil das profissionais que trabalham com práticas integrativas. Nisso, a gente chega a uma dimensão simbólica, quer dizer, tanto as profissionais quanto as usuárias dividem essa perspectiva de sentido, significados e representações culturais das práticas integrativas nos seus cuidados.  Como qualificar e socializar a PNPIC? É preciso associar as práticas integrativas e complementares com os marcadores sociais de gênero, etnicidade, classe social, escolaridade, regionalidade, faixa etária e outros. Com isso, a gente vai poder trabalhar a ampliação dos sentidos, significados e representações. Em Campinas (SP), por exemplo, os usuários que frequentam os grupos de Lian gong têm características sociodemográficas muito semelhantes a quem conduz os grupos. O que a gente está visualizando é que parece existir uma semelhança entre os profissionais que ofertam as práticas com os usuários que eles atendem no SUS.

 

“Práticas integrativas estão presentes no SUS em todas as capitais e são mais registradas na UBS”