O médico e pesquisador do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Charles Dalcanale Tesser acompanha a implantação de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde no SUS. Em artigos científicos publicados nos últimos dois anos vem alertando para estratégias que superem dificuldades de inserção dessa forma de cuidado na atenção primária, onde prioritariamente está e deve ser inserida. Defende formação e educação permanente, para que “as práticas saiam da marginalidade” e o incentivo para que estejam também presentes em serviços especializados.
Outro ponto abordado na análise de Tesser é o desperdício de tempo com a ausência de registro de informação e compartilhamento das experiências. “Cada local, município e Estado pode e deve criar suas diretrizes e políticas e implantá-las, mas seria caro, burro e temerário não socializar aprendizados que podem contribuir com isso”, comenta.
Tesser sistematizou e atualizou resultados de pesquisas realizadas em Campinas, São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis e Recife. É a partir desses dados que discute estratégias para as PICS. Avalia que as práticas integrativas e complementares em saúde estão em vários lugares, “mas muito pouco nas instituições e serviços médicos e nas instituições públicas de saúde, inclusive na Atenção Primária (APS)”. Na opinião dele, as PICS devem estar em todo os lugares, embora do ponto de vista institucional e do sistema público de saúde, o lugar ideal e prioritário para elas seja a APS. “A atenção primária, se universal, bem organizada e acessível, é onde ocorre e deve ocorrer o cuidado longitudinal clínico, preventivo e promotor, independentemente do tipo de problema de saúde que a pessoa tenha, o lugar ideal para as PICS”, argumenta.
Sobre a sensibilização dos profissionais de saúde para adesão às PICS, acredita haver muita formas de alcançar o desafio. “Aproximá-los de algumas, as que estiverem mais perto, propiciar que experimentem, é um bom começo. Um problema com esses profissionais que desconhecem e são médicos é a soma do desconhecimento com o ranço corporativo preconceituoso que a corporação médica introjeta em todos os seus aprendizes, lutando muito agressivamente no Ocidente para se estabelecer como a corporação dos curadores oficiais e depois para manter-se com esse relativo monopólio institucional, hoje relativizado por outras profissões da saúde com as quais tem uma relação tensa”. Superado o preconceito, “no presente mais fraco devido às PICS estarem na moda e ao crescente volume de pesquisas científicas e médicas sobre várias delas, é o caso de possibilitar que experimentem em si e nos seus pacientes”, observa.
Em entrevista por e-mail ao Observa PICS, discute implantação e expansão das práticas no SUS.Confira :
OBSERVA PICS – Num artigo publicado em 2017,você discute possibilidades estratégicas de expansão das PICS e afirma que a implantação das mesmas tem sido errática na APS do SUS. Essa irregularidade ou intermitência em diferentes regiões e instâncias da rede é um problema generalizado?
CHARLES DALCANE TESSER – Falei errática por vários motivos: primeiro, cada município é autônomo e faz como quiser. Não há regra ou diretriz federal sobre isso, a não ser a recomendação geral (que não tem consequência alguma se não seguida) de que seja na atenção básica, que eu prefiro chamar de atenção primária (APS). E a APS pode ser as equipes de Saúde da Família (SF) ou não. Uma coisa é o próprio profissional da SF ou do centro de saúde tradicional praticar cuidado convencional e também alguma PIC onde ele mesmo trabalha. Outra coisa é inserir PIC no SUS de outros modos. O Ministério da Saúde chama os NASFs de atenção básica, mas evidentemente que não é a mesma coisa ser profissional de uma equipe de SF ou de uma equipe de NASF. E o mesmo vale para o exercício das PIC. Muda a forma de acesso, muda a relação com o usuário e entre os profissionais. Há municípios que oferecem serviços só com práticas integrativas e complementares, sem fazer cuidado convencional, com acesso direto ou referenciado. Isso é diferente de PIC na Saúde da Família e no NASF. Há ainda os que colocam profissionais especialistas em PIC com os demais especialistas médicos e não médicos em serviços ambulatoriais especializados, com acesso apenas referenciado. Também há quem coloque profissionais que só praticam PICS num centro de saúde tradicional ou com equipes de SF. Há ainda quem coloque as PICS em hospitais, que é outro universo e atende clientelas com outros problemas. Todas essas possibilidades são possíveis e existentes no Brasil (e devem haver outras). Isso é relevante se a gente pensa que a APS, especialmente ela, é um local privilegiado para a prática das PICS e que as PICS podem e devem estar presentes e acessíveis a todos os usuários dessa atenção. As práticas integrativas e complementares podem e devem interagir, complementar ou muitas vezes substituir cuidados convencionais na APS, sobretudo em situações frequentíssimas em que o cuidado convencional é pouco resolutivo, frustrante e ou muito iatrogênico (deixa muitos efeitos colaterais). Por fim, isso é importante porque gera uma heterogeneidade muito grande entre os serviços de APS, que oferecem ou não alguma PIC. A heterogeneidade não é ruim em si, mas junto com ela vêm frequentemente boas e más práticas. Evitar as más e aproveitar as boas práticas, aprendendo com elas, gera impacto na qualidade do cuidado.
OBSERVA PICS – Dentre os problemas observados, você aponta falta de apoio financeiro e de orientação técnica institucional aos municípios. Como esse apoio poderia ser concedido? Por incentivos? Quanto à orientação institucional, têm que partir do Ministério da Saúde ou cabe a gestores estaduais e municipais instituírem sua própria política e adequá-la a sua realidade, promovendo a formação das equipes e a implantação das práticas?
TESSER – Um grande problema é o desperdício de experiências (vale ler Boaventura Santos) . Há várias experiências com PIC na APS (e fora dela) mas elas geram poucos aprendizados tanto para as instituições quanto para a academia. Esses dois artigos e outros tentam sintetizar e construir algo desse aprendizado; e socializar para que sirvam para geração de diretrizes sobre o que pode funcionar bem porque foi tentado, observado, avaliado de alguma forma, pensado. Não se trata de enquadrar todo mundo, ou de produzir evidências incontestáveis de modo a gerar diretrizes a serem seguidas, mas de registrar e acumular aprendizado para que não se fique desperdiçando tanto e tendo que começar tudo de novo em cada local, município, serviço, no que diz respeito às PICS e suas potencialidades para o cuidado clínico institucional, a promoção da saúde, a educação em saúde, a reabilitação etc. Claro que cada gestor deve criar suas diretrizes e políticas e implantá-las, mas seria caro, burro e temerário não socializar aprendizados que podem contribuir nisso. É mais ou menos como a APS convencional: não há que restringir ou obrigar nada, mas é inconcebível deixar de perceber o sucesso da Estratégia Saúde da Família (ESF) no país, que revolucionou e mais ou menos triplicou a rede de serviços de APS, melhorando-a, ainda que ela seja precária, a cobertura não seja universal e não consiga oferecer cuidado integral aos usuários atendidos (cuidados especializados e hospitalares quando necessários em tempo oportuno). Pensar as PICS na APS é levar em conta a APS e também enfatizar a conversão para a ESF. As três esferas de governo não quiseram, fizeram muito pouco ou não conseguiram mobilizar recursos para incentivar as PICs na APS e pouco se associaram a pesquisadores (que também são bem poucos) pra criar, aproveitar e aprender sobre boas práticas e experiências exitosas, receber orientações técnicas e dicas e construir padrões desejáveis de boas práticas.
OBSERVA PICS – Como poderia ocorrer a formação continuada no SUS em PICS e o matriciamento? Universidades e Telessaúde são opções ?
TESSER – O aprendizado ou a formação de praticantes em PICS é um tema espinhoso. Por sua própria definição ou em coerência com ela, os maiores entendidos em parte das práticas estão fora das instituições formadoras. E as universidades, que abrigam o Telessaúde, o UNASUS, a formação dos profissionais de saúde de nível superior, que serão referência para os de nível técnico, não se abriram significativamente, do ponto de vista institucional, para as práticas integrativas, apesar do crescimento dessa área acadêmica e de pesquisa no mundo, nos últimos 30 anos. Sei de apenas um único concurso até hoje para professor especificamente para trabalho de ensino e pesquisa nesse tema em uma universidade federal brasileira (na Bahia). Pode ser que tenham existido outros, mas acho que se existem, são bem poucos. Algumas PICS têm cursos de formação reconhecidos (acupuntura e homeopatia, por exemplo). Há graduação em quiropraxia no Rio Grande do Sul, por exemplo. Mas, provavelmente (não conheço estudos que tenham investigado isso), a grande maioria dos cursos de formação em PICS são privados e não regulamentados, que estão em proliferação, voltados para uma prática clínica privada, o que é um problema grande. Várias PICS juntam cuidado clínico com promoção da saúde, têm a possibilidade de empoderar e convidar para a autonomia e o desenvolvimento de habilidades e práticas de autocuidado, aumentando a participação dos usuários, diminuindo a dependência do cuidado profissional. Mas as formações privadas e mesmo a abordagem científica das PICS tendem a centrar-se nos seus aspectos de técnicas a serem manejadas por um profissional que as aplica ou as prescreve em um usuário passivo, ou no máximo obediente. Tendem a selecionar, modificar e adaptar as técnicas e saberes de várias PICS para seu exercício restrito, no contexto clínico, aplicando-as em usuários (que pagam, no sistema privado)..Seria importante maior abertura e estudo dos praticantes e dos saberes de várias PICS de modo ampliado e relativamente independente das relações típicas de prestação de serviço terapêutico, no mercado e mesmo no SUS (embora, obivamente, sejam muito úteis também pra isso). Interessa vê-las, pelo menos várias delas, mais amplamente, como saberes e práticas, com respectivos valores e sabedorias, de cuidado de si e do outro, pensadas como recursos tanto para os profissionais como para os usuários (de modo diferencial) de melhoria, (re)equilíbrio e potencialização da vida, para produzir mais autonomia e vitalidade. Nesse sentido, quanto à formação, quase tudo está ainda por fazer e desenvolver.
OBSERVA PICS – Pode exemplificar modelos de implantação já exitosos?
TESSER – Experiências relativamente exitosas eu conheço poucas, por limitação situacional mesmo, fico muito limitado ao meu canto na minha universidade. Participei quando profissional da APS no interior de São Paulo de duas (vários anos no Centro de saúde do distrito de São Francisco Xavier, no município de São José dos Campos, que tinha uma experiência grande quando cheguei lá e que depois foi se perdendo. Também trabalhei em Campinas, por três anos, que incentivou naquela época algumas PICS na APS. Como professor universitário, participei da experiência de Florianópolis de 2010 em diante. Ali, o foco foi legitimar os profissionais da ESF já com competência em PICS pra que pratiquem nos seus usuários; aproveitar essa competência já instalada para socializá-la na medida do possível, através de cursos de introdução teórico-prática a algumas PICS que eram ministrados pelos profissionais da rede para seus colegas; fazer parcerias com instituições, geralmente públicas, que pudessem ajudar na formação em PICS. Numa delas, profissionais do Hospital Universitário da UFSC deram vários cursos sobre plantas medicinais para equipes de APS, e de acupuntura para médicos, que passaram a práticar. Para promover o processo foi criada uma comissão pequena na Secretaria Municipal, formada por profissionais com competência em algumas PICS e que trabalhavam na APS, para pensar e negociar com a gestão municipal a viabilidade das práticas e esses cursos. Demorou, mas o tema foi aos poucos sendo aceito. Algumas práticas são amplamente usadas: auriculoterapia, plantas medicinais, acupuntura e em bem menos locais práticas corporais (Yoga, Chi Kung etc). Quase 10 anos depois, estamos agora fazendo um levantamento para ter uma perspectiva geral dos resultados alcançados, embora isso varie com os altos e baixos dos dramas político-administrativos da rede, sobretudo sua dependência absolutamente excessiva do ciclo eleitoral municipal. Por exemplo, os dois últimos anos foram de um atraso geral para a APS e também para as PIC na cidade, devido a mudança de gestão municipal, altamente traumática. Tento me concentrar no que se pode fazer, com base no que já foi feito e no está dando certo das experiências inventadas a que tenho acesso, para que não sejam desperdiçadas. Por exemplo, um centro de saúde grande num bairro muito pobre com muitos trabalhadores braçais criou um grupo de acupuntura para pacientes com dor crônica, fechado, com oito encontros, um por semana. Em cada reunião, o grupo trata de um tema diferente de PICS e dos problemas desses pacientes (direitos trabalhistas, previdenciários, plantas medicinais para dor, práticas corporais, etc). No final, há a aplicação das agulhas em todos, uns ao lado dos outros. É uma outra coisa muito diferente de apenas tratar essas pessoas com acupuntura em atendimentos clínicos individuais. Elas se conhecem, aprendem umas com as outras, trocam experiências e aproveitam de um outro modo o seu tratamento, que nesse caso não é apenas acupuntura. Estamos tentando publicar esta experiência.
OBSERVA PICS – A partir dos estudos que avaliou, pode-se concluir que as PICS estão hoje prioritariamente na APS. Mas são um recurso utilizado como prevenção primária ou secundária, promoção de bem-estar ou coadjuvante terapêutico do tratamento principal e convencional?
TESSER – É difícil ter uma visão geral do país, dada a sua dimensão e regionalismos e a escassa pesquisa em PICS na APS. Não saberia responder ao certo. O que me parece é que várias delas são usadas meio pragmaticamente para tudo um pouco, conforme as possibilidades de cada local, das comunidades e dos profissionais: como formas de tratamento clínico coadjuvantes ao convencional, como alternativas a ele, como preventivas, como promoção de saúde conforme o caso.