Integrando Saberes – Joao Paulo Tukano e os sistemas indígenas de conhecimento

O cientista social indígena e detentor de saberes de seu povo, João Paulo Tukano, participou do IV Simpósio Internacional Negritude em Pauta, realizado em agosto, no Rio Grande (RS). Originária do Alto Rio Negro, na divisa do Brasil com a Colômbia, a comunidade onde nasceu João Paulo preserva tradições, apesar das tentativas históricas de destruição da cultura desde a colonização brasileira. Numa palestra de 15 minutos, ele abordou a luta dos povos indígenas brasileiros para que tenham seus sistemas de conhecimento respeitados e valorizados pela sociedade e comunidade científica acadêmica. Sua fala considera os conhecimentos e a visão do povo Tukano, tratando da noção de corpo coletivo, tecnologia de cuidado como arte de cura. A transcrição dos principais trechos de sua fala estão a seguir. Assista na íntegra à apresentação em: https://www.youtube.com/live/VcPNfEB-lYI

Família como porto seguro e sistema próprio de conhecimento

“Foi falado que estar ligado, conectado com a família é questão de qualidade de vida. Se você perder sua conexão com sua família, com seu território, perde também a qualidade de vida, isto é, você perde suas referências, sua história, suas fontes que sustentam seu existencial.

No Brasil, somos em torno de 1 milhão e 700 mil indígenas, conforme o último IBGE. Somamos 305 povos diferentes e falamos 275 línguas diferentes.

E a língua, ou seja, a palavra, como já foi falado, para nós indígenas não é abstrata, ela é concreta na medida em que somos povos de oralidade. Aliás, pelas palavras é que se cura as pessoas e se negocia entre os povos indígenas. Portanto, ela é concreta.

É bom lembrar que cada povo tem seu sistema próprio de conhecimento, sistema próprio de formação de novos especialistas (pajés) e seus sistemas de parentescos. Por exemplo, eu sou do povo Tukano. E nós temos nosso sistema próprio de conhecimento, nosso sistema próprio de formação de novos especialistas. Nós temos nossas tecnologias, nós temos nossos especialistas. Isso é fundamental para nós.”

Conceitos e teorias indígenas

“Quando entro numa universidade, eu entro como Tukano. E levo para dentro das universidades o meu sistema de conhecimento, tecnologia, o meu pensamento, a minha filosofia. Daí a importância de nos considerarmos como povos e, como povos, reconhecermos que temos sistemas de conhecimentos próprios.

Nossos conhecimentos estão fundamentados em três grandes conceitos. Primeiro, aquilo que foi apelidado de mitologias, mas que não tem nada a ver com sentido de mitos, não tem nada a ver com sentido de lendas, magia. Isso tudo que é chamado de mitologias, para nós, são nossas teorias, são as formas como nós explicamos e organizamos as coisas. A partir dessas teorias é que construímos nossas relações.

Bahsese é outro grande conceito. Foi apelidado de benzimento e não é nada disso. Costumo dizer que, quem benze é o pastor, o padre, a freira, o Papa, porque eles estudaram teologia para isso. Eles têm fórmula certa para isso, para benzer. Mas quando o meu pai pega uma água ou qualquer outro elemento e começa a versar sobre ele, não está fazendo benzimento. Ele está fazendo uma produção de remédio metaquimicamente ou metafisicamente evocando elementos contidos nos vegetais e em outras coisas. Isso muda completamente os conceitos.

Outro grande conceito para nós são nossas práticas sociais, que podem ser chamadas de Bahsamori. As práticas sociais (festas, formação de novos especialistas, construção de roçados etc) são realizadas acompanhando as transições das constelações.

Os três conceitos não são separáveis pela lógica indígena, pois são conceitos que operam de forma conectada. Então, a partir desses três grandes conceitos, é possível a gente fazer um recorte para aprofundar. Aqui, por exemplo, vou fazer um recorte sobre medicina indígena.”

Medicina indígena e as capturas pela ciência

“Medicina indígena é uma terminologia nova proposta como resultado de pesquisas recentes desenvolvidas no meu mestrado e doutorado. Bom, quando eu falo de medicina, estou apresentando como contraponto dos termos como medicina tradicional, medicina milenar, de saberes indígenas.

Quando a gente começa a estudar a palavra tradicional, a gente vai perceber que ela é carregada de preconceitos. Nós precisamos estar atentos a essas armadilhas, senhores pesquisadores, professores. Tem um debate na América Latina sobre as terminologias como ancestralidade, tradicional, milenar. O que significa isso em poucos termos? Ela é carregada de um sentido místico. Ela é carregada de um sentido assistemático. Ela é carregada de um sistema de crenças, ou magias. Se a gente não atentar para essas coisas, a gente vai estar sendo capturado por esses conceitos e nós, como indígenas pesquisadores ou como pesquisadores negros, estaremos reproduzindo esse preconceito ao traduzir nosso conhecimento com esses jargões. Para nós isso é uma grande armadilha. Por quê? Porque quando a ciência não captura os conhecimentos dentro da lógica dela, ela joga para duas dimensões, isto é, na dimensão da religião e na dimensão do étnico.

Quando a ciência quer falar sobre os conhecimentos indígenas, ela usa o prefixo de etno: é etnoconhecimento, etnobotânica, etnohistória, etnomatemática, por aí vai. Tudo se tornou etno. Quando a gente olha de perto tudo isso, a gente vê que tudo é preconceito. Porque a ciência cria definições? Cria conceitos para desqualificar outros modelos de conhecimentos. Então, étno, sagrado, fé, religião, rezador, benzedor são traduções carregadas de preconceitos. São traduções para desqualificar, daí vem a demonização, a criminalização. Então, são armadilhas que precisam nos deixar atentos.”

Tecnologia de cuidados e arte de cuidado com a saúde e cura

“A terminologia de medicina indígena não significa dizer que nossa medicina seja tão igual à medicina ocidental. Não. Estamos dizendo que nós também temos tecnologia de cuidados, nós também temos nosso sistema de formação de novos especialistas, nós também temos nossos especialistas formadores. Mas as concepções e tecnologias que operam em cada modelo de medicina são totalmente diferentes. Conceito de cuidado, conceito de corpo é diferente. Enquanto que essa tecnologia de medicina ensinada pela universidade entende o corpo como um corpo meramente biológico. Povos indígenas não entendem o corpo como meramente biológico. Entendem o corpo como microcosmo e síntese de tudo que existe no mundo. Portanto, ela é uma potência. Esse conceito para nós é importante, pois a partir disso é que nós cuidamos da nossa qualidade de vida.

A palavra medicina, vocês que são médicos, vocês devem saber, ela significa arte de cura. Quando a gente olha, a partir dessa palavra arte de cura, a gente vai perceber que não existe no mundo povos que não tenham suas próprias artes de cura. Essa é a outra questão, pois, a medicina indígena é antes de tudo preventiva, nesse sentido não é só arte de cura que nós temos. Nós somos povos essencialmente preventivos e não essencialmente curativos. Assim, podemos entender que nós temos arte de cuidado com a saúde e cura. Por que vem cuidado primeiro? Porque nós somos povos preventivos. Não somos povos curativos.”

Centro de medicina indígena e plantas medicinais

“Em 2017, a partir de um episódio que aconteceu com a família, (…) fundamos o primeiro Centro de Medicina Indígena do Brasil, em Manaus. Já atendemos em torno de 17 mil pessoas durante esses oito anos de fundação. Desse número, 99% são não indígenas (…). Nossas tecnologias de cuidado são fundamentalmente três. Primeiro, Bahsese, aquilo que equivocadamente traduzido de benzimentos. Remédios à base de plantas medicinais. Que são produzidas por pessoas especializadas para isso. Que são pessoas que passaram por formação. E que para produzir adotam algumas regras essenciais (como não ter relação sexual antes de 24 horas), não comer alimento assado ou frito, porque, segundo nossa concepção, quando você vai pegar a planta, o seu corpo vai estar quente, então vai queimar a planta. Se for mulher, não estar no período de menstruação, porque o cheiro vai neutralizar sua potencialidade de remédio.

Daí vem a importância de a gente entender que produzir remédio a partir de plantas medicinais não é a mesma coisa que manipular quimicamente. Quem for levar essas plantas que nós utilizamos para o laboratório, para descobrir os princípios ativos delas, vai estar perdendo tempo, pois não é por esse caminho que passa, é outra forma de produzir remédio (…).”

Para além do aspecto biológico

“(…) Os ataques sobre o corpo não se restringem ao aspecto biológico, antes, envolve aspecto cosmopolítico e conecta a pessoa no coletivo ou numa teia de relações com outros seres, com os waimahsã, com os animais, com a floresta, com o território, com a água, com os artefatos, com a casa, com os parentes e outras pessoas. Sai assim do entendimento de que o corpo é restritamente biológico.

Outro ponto importante é falar sobre as pessoas que exercem o ofício de cuidar da saúde das pessoas. Eles não são líderes espirituais. Eles não adivinham doenças, não falam com os espíritos. Eles têm conhecimento muito sobre as causas das doenças, que basicamente são: alimentação, ataques de waimahsã, ataques interpessoais (feitiçarias), fenômenos naturais etc.

Assim, como qualquer profissional de saúde, eles têm protocolos específicos para diagnosticar e para tratar a saúde das pessoas. São equivalentes como médico, assim como enfermeiro.”

Povos de oralidade

“Nós estamos nesse mundo de livros. O que interessa na universidade, é o livro, é a escrita. Nós, povos indígenas, somos povos de oralidade. Sempre fomos, faz parte da nossa existência. A palavra para nós, nesse sentido, é concreta. Pelas palavras é que nós destruímos, pelas palavras que nós matamos, pelas palavras que nós curamos, pelas palavras que nós firmamos nossas relações sociais e em nossas relações cosmopolíticas. Portanto, nós somos corpos de oralidade, corpos de oralidade e corpos coletivos. Só para terminar agora, é que também foi falado muito nesse tempo, nessa convivência, que nós, povos indígenas, que eu percebi também afros, são corpos coletivos, essencialmente corpos coletivos. Mas, as universidades, as escolas destroem nossos corpos coletivos e nos constroem como corpos individuais. Isso é um grande sofrimento para nós. Daí, a gente repensar e ter a antropologia, como um instrumento para pensar o nosso pensamento.”

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