Ciência | Um caminho metodológico para as Pics
Diante do crescente interesse científico pelas Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (Pics), permanece um desafio central: como investigar, de forma rigorosa e coerente, práticas terapêuticas que operam segundo paradigmas distintos do biomédico? Foi a essa questão que se dedicou a pesquisadora Mariana Sato em sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), em 2024, na qual propôs um percurso metodológico que articula fundamentos filosóficos, escolhas técnicas e interpretação crítica para o estudo das Pics. Ela detalha, a seguir, o estudo e suas contribuições.

BOLETIM EVIDÊNCIAS – Qual o principal destaque da pesquisa?
MARIANA SATO – A partir da análise da Biokybernetik Smit — técnica inspirada na acupuntura — desenvolvi uma estratégia investigativa baseada no método misto com enfoque pragmático, integrando um ensaio clínico randomizado em cunha escalonada e uma análise fenomenológica interpretativa. Mais do que os resultados clínicos positivos, o principal destaque da pesquisa está na construção de um modelo metodológico reflexivo, que busca responder à complexidade das Pics com coerência epistemológica.
BE – Quais as contribuições do estudo?
MS – Entre as contribuições centrais do estudo estão: a explicitação dos pressupostos ontológicos, epistemológicos, axiológicos e metodológicos que orientam diferentes modos de produzir conhecimento, assim como a defesa do método misto como abordagem mais compatível com a complexidade das Pics. Esse método permite a investigação tanto dos efeitos mensuráveis quanto dos sentidos atribuídos pelos pacientes. Foi possível propor critérios para boas práticas metodológicas nesse campo, valorizando a articulação entre objeto, método e fundamentos teóricos. A tese também aponta limites do paradigma biomédico dominante, cuja lógica reducionista e objetivista tende a desconsiderar os aspectos relacionais, simbólicos e contextuais das práticas terapêuticas. Como alternativa, propõe-se o uso de referenciais como o co-construtivismo — que compreende o conhecimento como processo intersubjetivo — e o pragmatismo, que legitima as intervenções a partir de sua efetividade e utilidade no cotidiano das pessoas. Ao adotar uma postura investigativa sensível à complexidade das práticas integrativas, a pesquisa contribui não apenas para a produção de evidências sobre uma técnica específica, mas também para o fortalecimento científico das Pics como um todo. Sua contribuição reside na oferta de caminhos metodológicos que sustentem a ampliação do reconhecimento e da inserção qualificada dessas práticas no SUS, respeitando sua pluralidade e potência terapêutica.
BE – A terapia que você avaliou é usada no Brasil, por que foi a escolhida, e em que consiste?
MS – A Biokybernetik Smit é uma modalidade de Pics de origem alemã, desenvolvida com base nos estudos da acupuntura chinesa, que tem demonstrado evidências empíricas de alívio das dores crônicas, em projetos voluntários realizados em comunidades e em hospitais como o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e a Beneficência Portuguesa. A técnica envolve a aplicação de estímulos dinâmicos na superfície da pele, utilizando um instrumento metálico próprio – em formato de caneta, com a extremidade pontiaguda – de acordo com protocolos específicos. A hipótese é que os efeitos analgésicos da Biokybernetik Smit estão relacionados à ativação de mecanismos neurológicos correspondentes aos da acupuntura, exceto por aqueles que envolvem a lesão tecidual causada pela inserção de agulhas. O ambiente terapêutico promovido durante o atendimento também pode influenciar a percepção da dor, que se relaciona com o estado emocional de quem a vivencia. A Biokybernetik Smit foi escolhida pelos seguintes motivos: interesse e familiaridade por parte da pesquisadora e baixo risco (baseia-se em toques na pele com instrumento não perfurante).
BE – Em que os resultados da sua tese podem auxiliar a pesquisa sobre práticas integrativas e o reconhecimento das mesmas pelo SUS?
MS – Os resultados da tese contribuem para a pesquisa das Pics e seu reconhecimento pelo SUS ao aplicar abordagens metodológicas que capturam de forma abrangente seus efeitos e significados. O estudo adotou boas práticas metodológicas reconhecidas pela comunidade acadêmica para a investigação das Pics e promoveu uma reflexão crítica sobre os métodos utilizados, ressaltando a importância de estratégias que vão além dos ensaios clínicos convencionais. Demonstrou que as abordagens mistas — integrando análises quantitativas e qualitativas — são essenciais para compreender não apenas os impactos clínicos, mas também as experiências dos pacientes e os fatores que potencializam os benefícios terapêuticos. Os achados indicaram que as práticas integrativas influenciam múltiplas dimensões da saúde, incluindo aspectos físicos, psíquicos, sociais e espirituais, e que variáveis como autoconsciência, religiosidade e interação social desempenham um papel relevante em seus resultados. Dessa forma, a pesquisa reforça a necessidade de metodologias mais sensíveis à complexidade dessas práticas, contribuindo para seu fortalecimento científico e para sua inserção qualificada no SUS.
BE – A racionalidade médica pode ser usada na busca de evidência sobre Pics ou deve ser descartada?
MS – A racionalidade biomédica, embora tenha contribuído significativamente para a produção de conhecimento em saúde, precisa ser superada por abordagens mais abrangentes que integrem tanto a dimensão objetiva quanto a subjetiva, aspectos essenciais para a investigação das Pics. O modelo biomédico baseia-se predominantemente em uma lógica reducionista e objetivista, que busca evidências por meio de medições padronizadas e ensaios clínicos, ignorando, em grande parte, os aspectos relacionais, culturais e subjetivos que também influenciam a experiência terapêutica e os desfechos em saúde. No entanto, a superação dessa racionalidade não deve levar ao extremo oposto do construtivismo radical, que tende a desconsiderar a materialidade dos fenômenos biológicos e os critérios de validação empírica, restringindo-se à perspectiva subjetiva. Diante dessa limitação, é necessário adotar perspectivas epistemológicas que conciliam essas dimensões de forma integrada. O co-construtivismo surge como uma alternativa ao superar a dicotomia entre sujeito e mundo, compreendendo a realidade como um processo dinâmico resultante da interação entre fatores biológicos, culturais, sociais e cognitivos. Essa abordagem permite avaliar as Pics considerando não apenas seus efeitos clínicos, mas também a experiência dos pacientes e os sentidos atribuídos ao processo terapêutico. Outra abordagem estratégica é o pragmatismo, que rejeita verdades universais ou dogmáticas e propõe a construção do conhecimento a partir da experiência e da experimentação. No pragmatismo, o valor de uma prática é determinado por suas consequências na vida real, que legitima as intervenções com base em sua utilidade e efetividade na solução de problemas concretos.

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