Arte, movimento e outras práticas para cuidar da mente

Durante o primeiro ano da pandemia de Covid-19, cerca de 65% dos brasileiros ouvidos em pesquisa nacional realizada numa parceria do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica (Icict/Fiocruz), ObservaPICS e da Faculdade de Medicina de Petrópolis (FPS/Unifase) afirmaram usar alguma Prática Integrativa ou Complementar em Saúde (Pics) para aliviar o mal-estar físico ou emocional. Estresse, ansiedade e tristeza eram comuns na época pelas perdas, medo de morrer e pelo confinamento. As plantas medicinais, geralmente na forma de chá calmante, e a meditação prevaleceram entre as opções. Na rotina normal, fora da pandemia, o cuidado integrativo tem ajudado a promover saúde, prevenindo e aliviando o sofrimento mental.

No Serviço Integrado de Saúde (SIS) do Recife, da rede municipal, a psicóloga Simone Brito constata efeitos positivos em usuários de diversos perfis que praticam, na unidade, modalidades como arteterapia, biodança, bioenergética, dança circular, yoga, meditação, tai chi chuan, Terapia Comunitária Integrativa (TCI), auriculoterapia, acupuntura e psicomotricidade relacional. Ela observa “melhoria de diversos sofrimentos através do autoconhecimento e expansão da consciência de si mesmo”, promovida por essas práticas. Segundo Simone, “sair do olhar da doença e centrar nas potencialidades de cada pessoa” são propriedades desse cuidado integrativo vivenciado por aqueles que também fazem o tratamento convencional para seu adoecimento.

No SIS, Simone acompanha usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) com esquizofrenia, depressão e ideias suicidas, com transtornos de bipolaridade e traumas de violências sexuais e domésticas, assim como outros que sofrem com insônia, mal de Alzheimer e fibromialgia. Os com transtornos mentais são encaminhados de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e de Unidades da Estratégia Saúde da Família. No SIS, a psicóloga adota arteterapia para atendimentos em grupo, “trabalhando as emoções e sentimentos sempre através da criação de imagens do inconsciente” e acompanha, com a terapeuta de yoga e meditação Heliane Garcia, o grupo de mulheres Ciranda das Sábias.

O SIS é um dos centros especializados em Pics do SUS no Recife. Funciona no Engenho do Meio, Zona Oeste da cidade, numa parceria da Secretaria Municipal de Saúde com a Universidade Federal de Pernambuco. Lá são atendidos usuários de quatro dos oito distritos sanitários do município.

No Distrito Federal (DF), o artista plástico Antônio Edilson, que também é técnico em enfermagem, relata experiências em Centros de Atenção Psicossocial e Especializado em Práticas Integrativas. “Os grupos de yoga e de automassagem eram geralmente formados com os pacientes em quadro depressivo ou de ansiedade, mas havia usuários com outros perfis, pois os grupos eram abertos e qualquer pessoa da comunidade podia se incluir”.

Martha Villar Pópez, Live Rede MTCI/2022.

Evidências para orientar APS

Em Guia de auriculoterapia para depressão baseado em evidências (https://auriculoterapiasus.ufsc.br/recomendacoes/depressao/) os autores mostram, com base em revisão de literatura científica recente, “estudos controlados randomizados que indicaram ser a auriculoterapia uma técnica viável e eficaz no manejo da depressão, podendo ser recomendada o seu uso na Atenção Primária do SUS”. Foi publicado pela Universidade Federal de Santa Catarina em 2023, num projeto de capacitação de profissionais da APS em parceria com o Ministério da Saúde.

Dentre os estudos citados, eles destacam um que comparou os efeitos da prática em idosos com demência e outro cujo foco era o tratamento da depressão. Nos dois casos são apontadas melhoras significativas. De acordo com os autores do guia, “os psicofármacos são geralmente usados como a primeira escolha para o tratamento de depressão, porém, esses medicamentos apresentam efeitos colaterais significativos”. Na população idosa, prosseguem, onde há maior incidência de depressão, os efeitos adversos podem incluir, arritmias cardíacas, ideação suicida e maior risco de quedas.

Síntese de evidências produzida pelo Ministério da Saúde em parceria com pesquisadores da Fiocruz e de outras universidades, também aponta resultados positivos de diferentes Pics para transtornos alimentares e insônia. Entre as práticas mencionadas estão as da Medicina Tradicional Chinesa, como automassagem, acupuntura e auriculoterapia, além de meditação, yoga e fitoterapia.

Martha Villar Pópez, Live Rede MTCI/2022.

Princípios da Medicina Tradicional Chinesa

Com longa experiência em práticas integrativas na rede SUS do Distrito Federal, o médico Marcos Freire Jr, especialista em Medicina Tradicional Chinesa, explica que a modalidade reúne uma série de práticas baseadas na filosofia taoísta, dentre elas a acupuntura, exercícios de energia, automassagem, processos alimentares e vários usos.

“Essas práticas, quando realizadas sob a racionalidade taoísta, visam colocar a pessoa em um estado que experimenta a unidade”, diz. Segundo Freire, a ferramenta mais poderosa da MTC seja a de experimentar a união com a vida do planeta e do universo. “Na concepção taoísta, toda a vida está dirigida nessas duas direções, para a terra e para o céu. E enquanto estamos vivos, temos essas duas condições, a condição imaterial e a condição material”, explica.

De acordo com ele, os seres humanos, a partir de suas faculdades mentais, têm a possibilidade de fazer divisões nessa vida. Buscar a unidade seria a intenção proposta por essa filosofia. As práticas da medicina chinesa, nesse sentido, trazem benefícios para a mente, para as emoções e também para a vitalidade. “Insônia e ansiedade são sintomas de que há um desequilíbrio nessa relação do corpo com a mente, onde o corpo encontra-se enfraquecido e a mente encontra-se em excesso”, refere.

Com técnicas muito simples ao alcance de todo mundo e com efeito imediato, afirma o médico,”podemos alterar a ansiedade, a insônia, podemos tonificar nossa vitalidade porque na verdade o que a gente vai fazer é unir a mente, a intenção, o controle, a espiritualidade, a escolha da gente, com um fenômeno corporal”. Assim, completa, ao prestar atenção no corpo, a pessoa une exatamente a mente com o corpo. “O tratamento para todos os males, dentro da medicina chinesa, é promover essa união de mente e corpo”. A respiração e os exercícios são um caminho para isso e com um efeito imediato de transformação, ensina.

“Seria conveniente, antes de tomarmos o ansiolítico para ansiedade e insônia, que nós nos tratássemos de forma mais simples, mais econômica, menos invasiva, com procedimentos da medicina tradicional chinesa ou de outras medicinas tradicionais, mais simples, menos elaboradas”, defende Marcos Freire.

Martha Villar Pópez, Live Rede MTCI/2022.

Excesso de medicação e a mercantilização do sofrimento

No artigo É hora de mais práticas holísticas em saúde mental, publicado em junho deste ano na revista científica PLOS Mental Health, o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e psiquiatra Paulo Amarante (foto acima), o neurocientista Sidarta Ribeiro e a psicóloga Ana Pimentel, entre outros, fizeram uma crítica do modelo hegemônico dominante na psiquiatria, que reduz cada vez mais a compreensão dos fenômenos psíquicos comportamentais a distúrbios neuroquímicos.

“Cada vez mais a psiquiatria vai se apropriando da ideia da depressão, do fracasso, da tristeza, para uma ideia de que isso é um transtorno, sem considerar questões conjunturais, culturais, históricas, o aumento da noção de individualismo, da competitividade, da perda de laços sociais, da perda de reconhecimento no sentido filosófico do reconhecimento, do visto como sujeito, como sujeito de direito, como alguém que constrói coletivamente a sociedade”, afirma Amarante em entrevista ao Boletim Evidências.

Para o pesquisador, vivemos o hiperliberalismo autodestrutivo. “Não tem limite, destrói a natureza, os espaços coletivos, as associações, as entidades, os sindicatos, os partidos, gestando cada vez mais o sujeito com a sensação de que ele está sozinho”. Ao mesmo tempo, observa, “preconiza-se a ideia do empreendedorismo, que na verdade é uma forma de dizer que as pessoas estão perdendo o poder, estão perdendo força da sua ação coletiva”. Isso tudo, segundo ele, vem acarretando situações de estrutura social e de conflito. “Evidentemente, produz mal-estar e situações de sofrimento coletivo. A psiquiatria se apropria disso, captura isso como sendo um processo individual e mais do que isso, como um distúrbio neuroquímico”.

Com esse paradigma, avalia Amarante, “a psiquiatria vai perdendo a sua capacidade de historicizar, contextualizar, de entender a experiência psíquica como um processo social, histórico, cultural, que muda de acordo com os locais do planeta, as culturas, com as épocas etc”. Representaria, na opinião de Amarante, “a perda da capacidade da psiquiatria de pensar complexamente, a partir da contribuição das ciências sociais e humanas da filosofia, dos próprios saberes tradicionais, por exemplo, dos povos originários, que têm uma racionalidade, uma cosmovisão da experiência humana diversa, mas que tem efeito, tem efeito enquanto religião, enquanto princípio de ancestralidade etc”.

É uma crítica à psiquiatria que perde o seu diálogo, a capacidade de complexidade para reduzir-se a uma explicação etiológica absolutamente reducionista, mecanicista, organizacionista. “Inclusive os biólogos não gostam quando se fala em psiquiatria biológica, criticam essa visão, pois a biologia não estaria sendo pensada como uma das ciências que, criou o campo da complexidade, da multifatorialidade, da simultaneidade de processos de variáveis.”

Paulo Amarante defende que a psiquiatria deveria aproximar-se mais dos outros saberes, das outras compreensões e, inclusive, então, incorporar outras formas de tratamento. “Há uma pesquisa clássica, considerada a maior pesquisa sobre antidepressivos no mundo, e também a mais cara, envolvendo mais de quatro mil pessoas trabalhando diretamente, revisando toda a literatura que foi produzida sobre depressão, coordenada pelo professor Irving Kirsech, que esteve aqui na Fiocruz, entre nós, no seminário de droga psiquiátrica, no segundo seminário de 2018. Especialista no estudo sobre depressão, o pesquisador norte americano destaca-se por estudos sobre o efeito placebo. “Ele verifica que os antidepressivos de última geração, os mais modernos, e, consequentemente, também os mais caros, não têm efeito terapêutico superior aos antidepressivos mais tradicionais. E que de uma maneira geral os antidepressivos não provaram superioridade clínica terapêutica em relação a outros métodos de tratamento, como, por exemplo, as psicoterapias, terapias orientais, yoga, meditação transcendental, terapias integrativas, outras formas de cuidado”, explica Paulo Amarante.

Segundo ele, na pesquisa conduzida por Kirsech, fica demonstrado o efeito placebo do cuidado e que os outros métodos de tratamento para situações ditas de depressão, incluindo atividade física e cultural, são tão eficazes quanto os medicamentos, com a vantagem de que não têm os efeitos colaterais adversos, que hoje são comprovadamente graves.

Martha Villar Pópez, Live Rede MTCI/2022.

Gostou do conteúdo? Continue explorando o universo das PICS!

Assine a nossa newsletter e receba atualizações, pesquisas e novidades sobre Práticas Integrativas e Complementares em Saúde diretamente no seu e-mail.

📩 Cadastre-se agora e fique por dentro!