Com a participação de autoridades sanitárias, gestores do SUS, pesquisadores e profissionais de saúde, foi realizado na manhã da última segunda-feira (27/11), na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), no Rio de Janeiro, e de forma on-line, debate sobre a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC) e conceitos relacionados à temática. Palestrantes convidados fizeram uma retrospectiva histórica acerca da saúde como direito universal no Brasil e no mundo, valorização do autocuidado e dos saberes de povos tradicionais, como também abordaram o desafio de implementar política de práticas integrativas num modelo de saúde inclusivo, sem fins mercantilistas, pautado por formação de qualidade e apoiado por estudos científicos que consideram racionalidades e metodologias apropriadas, distintas de modelos biomédicos.
O evento Contextualização da Política e do Conceito de Práticas Integrativas e Complementares (PICS) foi mais um do ciclo de debates promovido pelo GT Pics da Ensp/Fiocruz. Apoiado pelo Observatório Nacional de Saberes e Práticas Tradicionais, Integrativas e Complementares em Saúde (ObservaPICS), vinculado à Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fundação, a iniciativa teve por objetivo fomentar a discussão em torno dessa modalidade de cuidado no SUS para a sociedade, profissionais de saúde, formadores e cientistas. As Pics estão institucionalizadas no Brasil, com 29 práticas reconhecidas pelo Ministério da Saúde, entre elas meditação, fitoterapia, auriculoterapia, acupuntura, homeopatia, arteterapia, aromaterapia, antroposofia, Terapia Comunitária Integrativa e reiki.
TRABALHO EM REDE
O diretor da Ensp/Fiocruz, Marco Menezes (à esquerda na foto em destaque, com Islândia Carvalho e Inês Nascimento/Virgínia Damas/Ensp), abriu o debate, destacando a importância da integração entre a escola e o ObservaPICS/Fiocruz na discussão em torno das práticas integrativas, para “consolidar a política como direito humano à saúde e fortalecer a formação nesse campo”. As parcerias da Fiocruz com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e com o Ministério da Saúde, enfatizou, são fundamentais também na atuação em torno das medicinas tradicionais e das Pics.
“Trabalhamos em rede para um debate mais amplo e qualificado. Falar para fora exige estarmos alinhados por dentro”, explicou Islândia Carvalho, pesquisadora da Fiocruz Pernambuco e coordenadora do ObservaPICS/Fiocruz. Segundo ela, existe uma hegemonia em torno das Pics no Brasil, com mais de 600 grupos de pesquisa cadastrados no CNPq trabalhando com assuntos relacionados à temática e, ainda a presença das práticas na Atenção Primária à Saúde de quase totalidade dos municípios, mas sem financiamento apropriado e visibilidade, em parte pelo preconceito. “Mapeamos na Fiocruz 236 servidores fazendo alguma prática integrativa, grande parte pesquisadores. Internamente, com eventos como esse, aberto ao público, e com a série de seminários internos que a VPAAPS e o ObservaPICS vêm promovendo, a Fundação avança para uma discussão qualificada. Se a gente não fizer isso, o mercado fará, visto que o mercado descobriu um nicho, usando as Pics como uma boa fonte de dinheiro e oferece cursos na internet de A à Z, iludindo as pessoas que em 24 horas terão formação.” Pontuou que “não é uma forma de colonizar as práticas integrativas”, mas devemos “alertar que para cuidar do outro é preciso ser cuidadoso”, que “para oferecer uma prática de qualidade é preciso qualificar a formação e o debate em torno dela em todos os níveis da educação”.
DESAFIOS DA POLÍTICA E DAS CIÊNCIAS
Daniel Amado, há cerca de duas décadas atuando em gestão de Pics e atualmente no Departamento da Gestão do Cuidado Integral do Ministério da Saúde, apresentou uma retrospectiva histórica do conceito de saúde e das políticas no Brasil e no mundo. Mostrou desafios a serem superados na implementação das práticas integrativas, no reconhecimento do valor do autocuidado pela academia e lembrou que os avanços no SUS se dão também por um processo de mobilização e construção social. “A Fiocruz é importantíssima, um braço do Ministério da Saúde no ensino, na formação e na implementação das políticas de saúde no território. Agradeço pela a oportunidade de ampliar a discussão em torno das Pics”, lembrou. A PNPIC, que completará 18 anos em 2024, corresponde, segundo Amado, a diretrizes e estratégias da Organização Mundial da
Saúde (OMS) em construção desde a década de 1970 para uma saúde integrativa de todos os povos como direito humano.
O sanitarista Rafael Dall’ Alba, consultor nacional da Opas/OMS em Sistemas e Serviços de Saúde, expôs os desafios da organização, nas Américas, para um debate sobre medicinas de povos tradicionais e práticas integrativas, considerando as concepções de cada país e a valorização de saberes ancestrais. Lembrou ainda que “cabe primeiro aos povos tradicionais definir o quê e como querem integrar suas medicinas aos sistemas de saúde”. Destacou o papel de instituições de ensino e pesquisa em saúde, como a Fiocruz, para qualificar o debate nessa temática.
Outro convidado foi o sociólogo e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Nelson Filice de Barros. “O Brasil é o maior país do mundo com política de Pics inserida no sistema público de saúde (SUS) e que abrange maior população comparado a outros”, lembrou. No sistema inglês, exemplificou, as Pics são oferecidas de modo privado. Nelson Filice explorou questões epistemológicas relacionadas aos termos “práticas alternativas”, “práticas complementares” e “práticas integrativas”, observando a interferência do neoliberalismo, do mercado biomédico e de medicamentos para manter predominante a concepção de cuidar de doenças e não cuidar de pessoas. O professor da Unicamp lembrou que um sistema de saúde como o SUS não pode ser excludente e que usar ou não uma terapia não medicamentosa (como determinadas Pics) deve ser escolha do usuário e não por ser o único recurso disponível a ele. O pesquisador também criticou o uso de modelos biomédicos por cientistas para buscar evidências em práticas integrativas, pois não dão conta de especificidades do autocuidado em saúde e nem da sociabilidade e de outros resultados conseguidos nas atividades em grupo (tai chi chuan, biodança entre outras), por exemplo. Essas modalidades de cuidado devem estar sujeitas a outras racionalidades e metodologias, defendeu.
Nelson Filice destacou também o processo de “humilhação social” sofrido por profissionais de saúde e pesquisadores que fogem de modelos biomédicos, seja realizando práticas integrativas com usuários do SUS ou desenvolvendo estudos. Essa humilhação se daria por meio de piadas, indiferença e falta de valorização do trabalho realizado. “Fique bem claro que não sou negacionista. Fazer críticas à ciência não é negar a ciência”, observou. Nelson Filice de Barros coordena o Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas (Lapacis) na Unicamp e é parceiro do ObservaPICS/Fiocruz, atuando em diferentes projetos e no conselho editorial do Boletim Evidências do Observatório. Assina, por exemplo, o guia Modelagem Farmácias Vivas, lançado em parceria com o Observatório.
O debate promovido na Ensp foi bem avaliado pelas organizadoras, não só em função das palestras dos convidados, mas também pela participação do público presencial e on-line, com várias perguntas em torno de racionalidades, da integração das medicinas de povos tradicionais e das Pics no SUS. “Cerca de 60 pessoas acompanharam o debate na sala da Ensp e uma centena, on-line, pelo Canal da escola no Youtube. Elogiaram o pensamento crítico dos expositores e lançaram diferentes questões. Ficou evidente o quanto é importante uma formação de qualidade nesse tema, estruturação de serviços e o trabalho em rede de ensino e pesquisa”, considerou Inês Reis, mediadora do evento, membro do GT Pics da Ensp/Fiocruz e colaboradora do ObservaPICS/Fiocruz.
A presença das coordenações técnicas das secretarias de saúde do estado e do município do Rio de Janeiro e diversas parcerias internas e externas a Fiocruz mostram a potencialidade e a pertinência do fortalecimento de trabalho em rede. No encerramento, Inês destaca que o anseio é “fortalecer o SUS, que nossa população possa se beneficiar do que só é possível dentro da esfera privada”. Segundo ela, a participação de palestrantes completamente envolvidos com a temática das Pics proporcionou atingir os objetivos esperados. “Assim socializamos conhecimentos relacionados à PNPIC, as práticas tradicionais e as suas racionalidades envolvidas, evitando a reprodução de modelos que interferem no cuidado, na formação e na lógica de pesquisa”, completou.
Quem quiser assistir o debate pode conferir no Canal da Ensp no Youtube.