Entrevista
Filha de uma adepta da homeopatia e mãe de um acupunturista, a cientista social Madel Luz iniciou os estudos sobre o que categorizou como racionalidades médicas depois de um problema de saúde da sua filha, aos três anos de idade. A menina, depois de receber diferentes diagnósticos, foi tratada por um homeopata. Até esse acontecimento, Madel enxergava um ar místico nessa prática integrativa e complementar em saúde. Os estudos sobre as PICS em si, sempre coube aos seus alunos, já que ela é uma profissional das ciências humanas. Apesar disso, é inegável sua contribuição para o avanço das pesquisas e do conhecimento sobre as práticas integrativas. Nesta entrevista para o ObservaPICS, ela se define como uma professora, antes de qualquer outra coisa, fala no que focariam hoje seus estudos se não estivesse aposentada, da necessidade da ciência de ver seus objetos de estudo com maior totalidade e dos desafios atuais das PICS que, de acordo com ela, ninguém fala no assunto, mas “todo mundo usa”.
ObservaPICS – Quem é Madel Therezinha Luz?
Madel Luz – Madel Therezinha Luz é antes de tudo uma professora, socióloga, que teve vários cursos, desde a graduação até a pós, pós, pós-graduação. Teve uma formação acadêmica muito pesada aqui no Brasil, na França, em Portugal. E se pautou sempre pelo trabalho com a sociologia da área da saúde da vida. Foi disso que eu me ocupei. Antes de tudo eu sou isso. Em segundo lugar eu sou uma professora apaixonada pelos alunos. É isso que eu sou também. Mais nada. Eu acho que tirando isso só resta ser mãe de família e todos me criticam pelo excesso de mimo que dou a filhos, netos e etc.
ObservaPICS – Como a formação em filosofia, sociologia e ciência política contribuíram para os estudos no campo da saúde e especialmente para o desenvolvimento do conceito de racionalidades médicas?
Quando você tem uma formação científica, seja em ciências sociais, seja em biociências, você tem um ramo específico como objeto de interesse. Você não vai dar conta de tudo. Desde o início eu me interessei pela questão da vida e da saúde, até por conta de questões familiares e pessoais. Eu comecei a estudar autores que trabalhavam com a vida e o adoecimento, mas por outro lado também as instituições de saúde, que eu chamei instituições médicas por serem assumidas pela medicina, porquê elas tratavam a questão da vida e da saúde desta maneira e não de outra. Eu achava que era uma visão muito restrita, muito limitada. Desde a primeira pesquisa, que foi a história institucional da homeopatia, até a parte das instituições médicas, cada uma delas no Brasil. Eu me interessei a partir do ensino da política, do doutorado em política, a ver a relação entre o Estado e as instituições. Por aí eu fui para as instituições de saúde. Por aí eu peguei o papel da medicina nas instituições médicas. Então os objetos de estudo foram se desdobrando a partir dessas escolhas.
ObservaPICS – Em que precisa focar os futuros estudos sobre as racionalidades? Qual continuidade necessita ser dada por seus ex-alunos nesse campo?
ML – Essa é uma questão muito difícil porque cada pesquisador escolhe continuar uma determinada linha de pesquisa ou uma determinada orientação conceitual se ele está interessado naquilo. Eu atualmente acho que tem uma pessoa que nem é desta área acadêmica que segue mais o meu estilo de pensamento que é o Daniel Amado (ex-coordenador da PNPIC). Hoje, se você olhar, o Daniel tem na comunicação dele, ele procura trazer para o público mais amplo a definição de racionalidades médicas. Eu fiquei impressionado quando eu abri hoje (dia da entrevista) o meu e-mail e vi que Daniel tinha feito um resumo acessível a pessoas que não são pesquisadores nem acadêmicos, do conceito racionalidades médicas e das categorias. Tive uma série de alunos que fizeram doutorado, pós-doutorado, às vezes, que se interessaram pela questão de determinada racionalidade médica, como a medicina tradicional chinesa, a homeopatia. Outros se interessaram em afinar conceitos próximos de racionalidade médica, como é o caso do Nelson Filice (professor da Universidade de Campinas/SP). Eles escolhem os caminhos a partir de uma inspiração, mal comparando. Você pega o pensamento de Foucault, que pensa a questão da vida e da contenção da vida pela sociedade ou pela ordem social, da verdade também, e cada grupo de discípulos desenvolveu uma linha. Aquilo se abre como um guarda-sol. Não é necessariamente uma seguidinha de linha. Cada um dá sua versão. Alguns se afastam mais. Você vê, por exemplo, o Roberto Machado (filósofo), que faleceu agora (em maio de 2021) e que desenvolveu o pensamento foucaultiano em outra direção. A direção que ele considerava mais adequada, com a história das instituições públicas de saúde do Brasil no século 19. Eu me beneficie muito desse estudo dele, que já era um produto das análises de Foucault.
ObservaPICS – Se a senhora ainda estivesse na universidade, em que a senhora focaria seus estudos sobre racionalidades?
ML – Eu não sei se eu continuaria trabalhando com as racionalidades médicas ou se eu tentaria trabalhar com as escolhas que as pessoas fazem de modos de tratamento de doenças. Por que as pessoas escolhem homeopatia? Por que as pessoas escolhem outros tipos de tratamento que nem são racionalidades médicas? São propostas, modos de encarar o adoecimento às vezes até místicos. Por que elas vão por esse caminho ou não por outro? E também por que a universidade continua sendo um lugar tão fechado, tão limitado para um conhecimento maior da população? Por que se fecham em departamentos compactos onde a lei da competição impera? Eu não tenho boa impressão da universidade, não. Eu acho que há outras instâncias de produção de conhecimento, de compartilhamento do conhecimento, que são mais democráticas.
ObservaPICS – A senhora sempre diz que foram seus alunos que a levaram para a temática das práticas integrativas em saúde.
ML – Exato. Eu tinha meus conceitos e preconceitos contra essas práticas. Eu tinha ainda bem grudada na cabeça a ideia de cientificidade. Quem não tem cientificidade não tem autenticidade, não tem capacidade de cura. Eu pensava assim. Eu tinha minha cabeça feita pelas ideologias da universidade. Depois eu percebi que não é bem assim. Que tem um conceito que não é muito apreciado pela medicina atual, que existia na homeopatia, existe nas medicinas oriental como a ayuverda da medicina chinesa, que é o conceito de cura. A medicina abandonou a partir da modernidade científica, século 17, 18, progressivamente, o conceito de cura porque o conceito de cura estava ligado a arte de curar. Eles queriam e conseguiram, que a medicina fosse ciência neutra. Essa proposta epistemológica tornou-se dominante na biomedicina. Mas outras racionalidades médicas não têm essa proposta, a começar pela homeopatia que foi a primeira que eu estudei. A questão central da homeopatia é a cura do indivíduo doente, desequilibrado em sua função vital. Portanto reintroduzir o equilíbrio vital naquela pessoa que adoeceu porque alguns circuitos vitais se desentenderam, entraram em colapso ou não estão seguindo uma certa ordem de vida. Agora a biomedicina está chegando aí.
ObservaPICS – O que suas pesquisas e a desses orientandos têm mostrado nas últimas três décadas sobre essas práticas?
ML – Uma coisa é você estudar as racionalidades médicas. A minha escolha maior, epistemológica, é pelas racionalidades médicas porque mostra que existem sistemas médicos complexos que têm sua racionalidade e que são tão medicina quanto a medicina ocidental, moderna e contemporânea. Agora as práticas terapêuticas elas são elementos que estão inseridos na cultura, elementos ligados à cura, ao cuidado. Não me compete julgar se curam, se não curam, se esse cuidado é bom, não é bom, porque eu sou da área social. Não me compete julgar nada em termos de eficácia ou não eficácia. Mas as pessoas que estudam, estudaram, meus alunos que fizeram trabalhos sobre essas práticas de cura, as terapias ou terapêuticas alternativas, como se chamava antes, agora se chama terapêuticas vitalistas ou outra coisa, eles trabalham com o papel que têm aquelas práticas na cura de determinada disfunção de adoecimento. É um objetivo mais prático se você quiser entender. O outro pode ser mais teórico, de como funciona aquela racionalidade médica, como ela vê e define diagnose. É impressionantemente diferente e, no entanto, é uma diagnose, uma diagnose de desarmonia vital. Como nossa medicina ocidental se ocupou muito mais do combate à patologia, do combate à doença, ela perdeu de vista a questão do equilíbrio vital e da cura do indivíduo como medicina.
ObservaPICS – A academia mudou seu olhar sobre as PICS nos últimos anos? As práticas integrativas têm ganho espaço entre estudantes, professores e pesquisadores?
ML – Sem dúvida ganharam. Do meu tempo, quando comecei a estudar o que deveria ser minha tese de doutorado, as instituições médicas e as políticas públicas de saúde, até a época que eu defendi a tese de professor titular para agora, nossa, a mudança do olhar é grande. Já se sabe que não existe essa dicotomia entre a ciência médica e as práticas alternativas como uma coisa de verdade e falsidade. E muito alunos que estão na área biomédica trabalham buscando confirmação ou autentificação dessas práticas alternativas que são de vários tipos, inclusive diagnósticos, não é só de terapêutica, não, até na linha de diagnose também.
ObservaPICS – Como a senhora vê a cobrança por evidências científicas para as PICS?
ML – Olha só! Isto é do meu ponto de vista, mas eu ainda preciso deixar muito claro em escritos, isso é parte da racionalidade científica moderna. Isso está no livro que foi minha tese de professor titular, Natural, racional, social – Razão médica e racionalidade científica moderna. Do século 16, 17, quando entrou a modernidade, a necessidade de verificação de fatos, é uma coisa que se da no todo no conhecimento, na totalidade do conhecer. Então eu não estou criticando isso não. Eu acho que é um avanço grande da sociedade. Só que, no que concerne a essas disciplinas que ficam entre o teórico e a prática técnica, como é a medicina, a terapêutica, isso criou uma série de questões epistemológicas e operativas também. E a medicina, ela que era uma arte de cura, praticamente uma arte de curar que era exercida por um sujeito específico, médico, e você tinha o doente, e ele se encarregava por sua arte da cura daquele doente, e descobrir que doença estava causando aquilo para poder intervir e restabelecer a saúde. Só que a gente sabe que na modernidade, o ser humano iniciou esse processo de destruição da natureza, de colonização da natureza e um conjunto de adoecimentos, coletivo, inclusive, que na verdade já tinha começado no final da idade média, mas sobretudo começa a se espalhar com a colonização porque o homem branco leva para as selvas, leva para a área africana dos negros as suas doenças. Isso começou a exigir uma outra atitude e um outro tipo de praticante, que não era mais o da arte de curar. Ele tinha que ser uma espécie de cientista da doença. Também a ciência na modernidade, vamos colocar o século 17 como um marco importante, mais até que o século 16, ela passa a procurar leis. Leis da sociedade, leis da natureza, classificação de ramos da natureza, classificação do papel do ser humano no conjunto das espécies. Enfim, uma hierarquização que eles fazem que sinceramente eu considero tosca. Mas não sou só eu, não. Atualmente, os cientistas, os biólogos, consideram isso tosco. Mas na época era considerada uma classificação científica. Então há uma busca classificatória que refaz o papel do médico, o papel da medicina, que passa de uma arte de curar para ciência das doenças. Fica mudado do ponto de vista epistemológico e da intervenção junto ao doente, no sentido de combater à doença e não de curar o doente de seu desequilíbrio vital. É preciso também levar em consideração que havia muitas epidemias por essas épocas, devido as situações higiênicas muito precárias nesses séculos. A questão do adoecimento vinha assim; uma epidemia passa, uma pandemia passa, mata milhares. Se a gente está nesse nível de apavoramento por conta dessa pandemia, nos séculos 15, 16 e 17 eles estavam indefesos porque não tinham conhecimento acumulado sobre aquilo. Isso faz com que haja uma transformação epistemológica dessa era. A observação sistemática passou a ser algo muito importante, fazer qualquer afirmação propositiva. Assim começa a nascer o método científico moderno. Não existe de minha parte e nem pode existir, se eu estou no papel de analista, nenhuma classificação ou condenação se isso está certo ou errado. É como a história evoluiu. Sem ela ter evoluído nesse sentido não teríamos os avanços do conhecimento que temos nas diversas disciplinas. É muito importante levar isso em consideração. Agora podemos nos dedicar também a ver em que há insuficiências. O que ela deixa de fora, o que não considera essa forma de conhecimento. A impressão que eu tenho, pelos inúmeros depoimentos de cientistas que fazem inclusive apresentações, gravações para televisões, que dão acessibilidade para pessoas que não são da área dele. Eu gosto de ver esses documentários, eu acompanho muito. Eles mostram como é necessário restaurar a unidade do conhecimento e como é necessário também perceber que a ciência precisa ter uma visão de maior totalidade de seus objetos e compartilhamento de resultados.
ObservaPICS – E qual o maior desafio para as PICS atualmente?
ML – Eu tenho duas impressões, mas posso estar errada. Eu tenho a impressão que o pessoal das PICS até hoje não entendeu completamente, em plano epistemológico, o que são racionalidades médicas, que levam aos sistemas médicos complexos, e o que são práticas integrativas em saúde. Eles tendem a misturar essas duas categorias, no sentido, penso eu, às vezes, de legitimar sua terapia, sua prática terapêutica como uma racionalidade médica, o que não é o caso. Um caso é uma prática terapêutica, uma terapia, que pode ser abrangente, incrível, mas não é uma medicina, um sistema médico. A racionalidade médica é um sistema médico com cinco dimensões, ancoradas numa cosmologia. Mais simples do que isso eu não sei falar. A primeira dificuldade são os profissionais e os próprios praticantes das terapias, que tendem a não entender, ainda, a diferença entre as racionalidades médicas, os sistemas médicos complexos, que eu localizei cinco. Pode ser que haja outro que eu não conheça. Pode ser que venham a existir outros que eu não vou conhecer. As práticas terapêuticas, com toda a utilidade social que elas têm e tem muita, elas não são racionalidades médicas.
ObservaPICS – E isso atrapalha eles em quê?
ML – Eu acho que eles pensam que dá legitimidade se disser que é uma racionalidade médica, que é um sistema médico. Eu tenho impressão que é no sentido da legitimação. Por que não legitimar as próprias práticas? Legitima como tal. Pensa nessas práticas terapêuticas que são dezenas e pensa também na pobreza que são as práticas terapêuticas na área biomédica. Você só tem a farmacologia e a dieta. Que mais você tem?! A intervenção cirúrgica?! Isso não é terapêutica.
ObservaPICS – Qual seria o segundo desafio para as PICS?
ML – É legitimá-la. Mostrar que elas funcionam. Juntar estatisticamente dados que comprovem que aquilo funcionou para aquela situação. Legitimá-las como eficazes, com grau de eficácia. Não sou epidemióloga, não fiz estudo nessa linha. Não sei em que medida não podem começar a fazer em todas (terapias), como em homeopatia. Em homeopatia já fazem isso há mais de um século, tentam provar que são uma medicina que funciona. Pesquisas médico-científicas mesmo. Colocar grupos que se trataram com aquilo e grupos que não se trataram (chamados de controle) e chegar as comprovações que houve melhoras, que houve cura com aquela intervenção. Eu tenho impressão que esse método científico tem suas qualidades.
ObservaPICS – Este ano a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares fez 15 anos de instituída. Quais os avanços gerados à saúde, no Brasil, por essa política?
ML – É preciso que a pessoa tenha investigado, juntado dados para poder fazer uma afirmação embasada. Eu não fiz isso. Alguns alunos meus fizeram e tem também o pessoal do Ministério da Saúde, como o Daniel Amado, a Carmem (Di Simone??) que vêm acompanhando o desdobramento disso. Uma questão interessante é a colocação dentro do sistema de saúde, na Atenção Básica, dessas terapêuticas alternativas. Eu acho que essa legitimação institucional dentro do Sistema Único de Saúde, no atendimento base, é um grande avanço porque é melhor estar ali do que não estar no sistema. A outra coisa é de que fato, a população no geral, desde o final dos anos 80, início dos anos 90, ela faz uso dessas práticas. A população de classe média, mesmo fora do sistema único de saúde básico, faz uso das diversas terapias ditas alternativas. Eu faço, você deve fazer. Todo mundo faz. Ninguém nem fala no assunto e todo mundo usa. É consenso na população. O que você quer mais? Ninguém vai querer ficar tomando injeções, medicamentos que produzem adição. Eu, graças a Deus, só tenho uma medicação que eu sei que sou adita. Como que eu vou me livrar dessa medicação que é um hipotensivo, embora a dose seja mínima? A losartana potássica está aí. Ela é tão droga quanto qualquer droga. Ela não me curou da hipertensão. Se eu passar quatro dias sem tomar a medicação eu tenho uma crise hipertensiva. Então ela não curou. Ela não tem capacidade de cura. E esses medicamentos, todos que são feitos pela indústria de medicamento, no sentido de gerar lucro eles, não podem gerar nada que curem porque vão cair os lucros. É preciso pensar nisso também.
ObservaPICS – Já experimentou alguma PICS para cuidar de sua saúde? Faz acompanhamento com alguma delas e que resultados obteve?
ML – Atualmente eu só faço fisioterapia, mas a versão dessa fisioterapia é francesa e baseada num outro esquema, numa outra visão de organização musculoesquelética. A minha terapeuta coloca um determinado tipo de faixas, em lugares específicos, para que haja reorganização do posicionamento de músculos e ossos em relação a postura ideal. É a única coisa que faço de terapia alternativa. Recentemente, devido a grandes dores de um trauma no ombro direito, eu não queira mais tomar os relaxantes musculares porque estavam afetando muito gravemente meu sistema digestivo, eu, por umas poucas semanas, estou tomando um medicamento homeopático de bem baixa dinamização. Durante 25 anos, mais ou menos, eu me tratei com homeopatia.
ObservaPICS – Além da homeopatia já usou outra prática?
ML – Sim, claro! O meu filho é acupunturista, só que agora mora em João Pessoa. Então ele fazia outro esquema de tratamento comigo.
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