Coordenador há quatro anos da Rede de Atenção à Pessoa Indígena, o professor Danilo Silva Guimarães *, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP), promove uma escuta qualificada a povos de diferentes aldeias e vem estreitando a relação de professores e alunos da universidade com lideranças comunitárias de etnias diversas. O resultado é um engajamento com o trabalho colaborativo, acompanhado de reflexões, estudos etnográficos e de psicologia cultural e indígena. Membro do Conselho Editorial do site e do boletim Evidências do ObservaPICS, Danilo Guimarães fala nesta entrevista sobre saberes tradicionais, ciência moderna e formas de cuidado.

Professor e pesquisador Danilo Silva Guimarães, do IPUSP (IPUSP/Divulgação)

 

OBSERVAPICS – Como definir saberes tradicionais em saúde (sistema de cura e cuidado)? 

DANILO GUIMARÃES-  Todo saber, em qualquer área de conhecimento, vincula-se a alguma tradição. Não é diferente na área da saúde. Falar em saber tradicional demanda um questionamento seguinte, a saber, a qual tradição (ou tradições) se vincula um determinado saber? A tradição ocidental vem constituindo sistemas de conhecimento ao longo de séculos de elaboração de pressupostos e concepções originárias das tradições greco-romanas e judaico-cristãs. Esses pressupostos, reelaborados e transformados na temporalidade das trocas culturais, deram origem às ciências modernas e à psicologia tal como a conhecemos hoje. Outros povos ao redor do mundo também seguem cultivando pressupostos e concepções, construindo conhecimento, a partir de matrizes culturais diversas, distintas tradições. De modo que articulam seus conhecimentos e fundamentam suas práticas de cuidado segundo sistemas de pensamento e linguagens que lhes são próprios. Ao afirmar que apenas os saberes que não foram articulados pelas ciências modernas são tradicionais, negamos o que há de pertencimento cultural—ou seja, a tradição marcadamente greco-romana e judaico-cristã —nas categorias acionadas pelas ciências modernas na compreensão dos fenômenos humanos, incluído aí, o tema da saúde. O que vemos, então, é um conflito entre tradições que fundam distintas concepções de saúde, mas que, por sua vez, precisam se conhecer e se respeitar mutuamente. 

 

OBSERVAPICS Você considera que a ciência moderna também é saber  tradicional? Pode explicar melhor? 

DANILO GUIMARÃESO que estou assinalando é que a tradição é a base para o conhecimento, filosófico, científico, artístico, religioso, político etc. A ciência moderna pretendeu construir uma ideia de conhecimento impessoal, objetivo, livre dos “vieses” afetivos e culturais, mas esse é um projeto que fracassou no âmbito dos debates epistemológico. Embora no senso comum e nas escolas ainda seja difundida uma falsa ideia de neutralidade no processo de construção de conhecimento científico, a suposta pretensão de isenção nas representações que os pesquisadores constroem dos fenômenos que investigam foi amplamente questionada ao longo do século XX. Qualquer reflexão séria a respeito dos pressupostos inquestionados dos saberes e conhecimentos legitimados pela ciência nos coloca em contato com a pervasividade de interesses políticos, instrumentais, estéticos, pessoais, éticos, portanto, também étnicos e culturais nas diferentes formas de conceber os saberes na produção científica. Outras rotas de construção de conhecimentos, alinhadas a tradições que não têm sido incluídas no campo legitimado pelas ciências modernas, podem ser muito sofisticadas, porém partem de outros critérios de validação dos saberes produzidos, o que torna difícil a inteligibilidade mútua, o diálogo e a confiança entre sujeitos de conhecimento constituídos em tradições muito distintas.

 

OBSERVAPICS – De que modo a psicologia (cultural) tem se aproximado desse tema? Por quê?

DANILO GUIMARÃESPara a psicologia cultural e indígena, é fundamental a compreensão dos processos de construção de identidades e alteridades _ por exemplo, reconhecer a minha tradição, reconhecer a tradição do outro, sendo que, no diálogo, tanto as identidades quanto as alteridades se transformam. Essa compreensão é importante para a psicologia.  A partir dela podemos propiciar condições de convívio sereno e confiado entre pessoas sem reduzir as diversidades interpessoais e interculturais. O convívio sereno e confiado entre diferentes é, por sua vez, condição para a saúde, explica Luís Claudio Figueredo, no livro Revistando as psicologias, da epistemologia à ética nos discursos e práticas psicológicas.Significa experimentar o corpo como fonte de prazer, realizar intervenções efetivas sobre o mundo circundante e agir propositivamente diante das esferas mais íntimas e também mais coletivas da vida em sociedade.

 

OBSERVAPICS – Qual a realidade de povos indígenas brasileiros quanto à preservação dos sistemas de cura?

DANILO GUIMARÃES Considerando que cada povo indígena é, em si mesmo, heterogêneo, não é possível falar em uma realidade a partir de um princípio de unidade  _ que é a maneira como o ocidente tradicionalmente elabora a ideia de realidade_ acionando a categoria de universal que, por sua vez, nas ciências modernas, é visada pela generalização do conceito científico. Desse modo, os sistemas de cura são diversos, e sua preservação responde às diferentes maneiras como os povos têm conseguido resistir aos avanços de posturas colonialistas no passado e no presente. Práticas comumente percebidas como o uso de plantas medicinais, cantos, danças dentre outros ritos do cotidiano das comunidades indígenas costumam guardar concepções muito profundas a respeito do processo de saúde-doença que só podem ser percebidas por meio de uma compreensão de sentidos articulados na cosmovisão de cada um dos povos que realizam essas práticas. Em todo caso é possível afirmar que, por um lado, há de comum entre essas realidades a resistência às posturas deslegitimadoras dos diversos saberes indígenas, desde a tradição religiosa que historicamente condenou as concepções e práticas indígenas até a tradição científica que, não raro, faz o mesmo. Por outro lado,  a documentação desses saberes ainda é escassa, em especial, devido às condições desfavoráveis de acesso dos indígenas à universidade.

 

OBSERVAPICS – Como avalia a relação do saber convencional com a medicina indígena, considerando as práticas existentes no SUS e o padrão acadêmico de formação de profissionais de saúde?

DANILO GUIMARÃES As concepções e práticas de cuidado em saúde oriundas das tradições ocidentais modernas compõem quase a totalidade da formação de profissionais no Brasil que, muitas vezes, encontram dificuldades de fazer dialogar as concepções e práticas formalmente aprendidas com a de seus interlocutores de diferentes povos indígenas. Tal dificuldade de diálogo produz um tensionamento muito grande entre as equipes de saúde e a população atendida, que dificulta o exercício profissional e prejudica o acesso de comunidades indígenas a um cuidado qualificado.

 

OBSERVAPICS – Que projetos mantém no IP/USP para o diálogo entre os dois saberes (convencional e o tradicional indígena)?

DANILO GUIMARÃES No Instituto de Psicologia da USP, coordeno o serviço Rede de Atenção à Pessoa Indígena desde 2015. Preliminarmente, desde 2011, iniciamos um projeto de mesmo nome que participou da organização de uma série de encontros com pessoas de comunidades indígenas visando a escuta qualificada e o estabelecimento do vínculo necessário para a compreensão de vulnerabilidades psicossociais enfrentadas por elas nas suas comunidades. De lá para cá vêm participando da Rede docentes, pós-graduandos e graduandos de diversos cursos da universidade, que fazem sua formação por meio do engajamento em um trabalho colaborativo com lideranças comunitárias, reflexões e estudos no âmbito das produções etnográficas e, fundamentalmente, da psicologia cultural e indígena. As tarefas de cuidado em saúde vão muito além do que se ensina e prescreve. Necessitam, portanto, contemplar a complexidade das relações concretamente estabelecidas entre as pessoas que participam das ações de cuidado, sem se omitir ou abster do envolvimento com as práticas comunitárias, mas estabelecendo um balanço com as formas adequadas de se lidar com os excessos da presença, que acabam por se sobrepor e desqualificar os cuidados que são próprios e autodeterminados pelas comunidades. Em 2017 foi inaugurada a Casa de Culturas Indígenas da USP (foto em destaque/ IPUSP/Divulgação), que fica situada no Instituto de Psicologia. A casa é uma construção tradicional Mbya Guarani que visa contribuir com a afirmação, no espaço acadêmico, de pessoas indígenas de todos os povos, como sujeitos de conhecimento e de direitos, reunindo nesse local a possibilidade de se refletir sobre diversos desafios enfrentados contemporaneamente pelas comunidades.

* Danilo Guimarães é doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) com período sanduíche na Clark University (EUA) e livre-docente na área de História e Filosofia da Psicologia, do Departamento de Psicologia Experimental do IPUSP. Desenvolve e orienta pesquisas na área de problemas teóricos e metodológicos da psicologia: construtivismo semiótico-cultural, com ênfase nos processos culturais de construção do sentido, multiplicação dialógica, relações interétnicas, psicologia e povos indígenas. É assessor de agência de fomento à pesquisa e faz parte de conselhos editoriais de periódicos científicos nacionais e internacionais. 

Para leitura complementar

Referências sugeridas pelo entrevistado:

Artigos

GUIMARÃES, D. S.. Towards a cultural revision of psychological concepts. CULTURE & PSYCHOLOGY, p. 1354067X1882063, 2018.

KAWAGUCHI, D. R. ; GUIMARÃES, D. S. . Is everybody human? The relationship between humanity and animality in Western and Amerindian myth narratives. CULTURE & PSYCHOLOGY, p. 1354067X1877905, 2018.

ACHATZ, R. W.; GUIMARÃES, D. S. An invitation to travel in an interethnic arena: Listening carefully to Amerindian leaders’ speeches. Integrative Psychological and Behavioral Science, https://doi.org/10.1007/s12124-018-9431-0, 2018.

JENSEN, M. ; GUIMARÃES, D. S. Expanding dialogical analysis across (sub-)cultural backgrounds. Culture & Psychology, p. 1354067X1875434, 2018.

Livro organizado 

GUIMARÃES, D. S.. Amerindian Paths: Guiding Dialogues with Psychology. 1. ed. Charlotte, NC: Information Age Publishing, 2016. v. 1. 366p. (Google Scholar 7)

Capítulos de livros publicados

GUIMARÃES, D. S.; BENEDITO, M. A. . The Construction of the Person in the Interethnic Situation: Dialogues with Indigenous University Students. In: Alberto Rosa; Jaan Valsiner. (Org.). The Cambridge Handbook of Sociocultural Psychology. 1ed.Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2018, v. 1, p. 575-596.

BERTHOLDO, M. ; GUIMARÃES, D. S. . Amerindian Support Network. In: Sanna Schliew; Nandita Chaudhary; Giuseppina Marsico. (Org.). Cultural Psychology of Intervention in the Globalized World. 1ed.Charlotte, NC: Information Age Publishing, 2018, v. 1, p. 119-134.

GUIMARÃES, D. S. Amerindian Psychology: The Cultural Basis for General Knowledge Construction. In: Brady Wagoner, Ignacio Bresco de Luna, Sarah H. Awad. (Org.). The Psychology of Imagination: History, Theory and New Research Horizons. 1ed.Charlotte, NC: INFORMATION AGE PUBLISHING, 2017, v. 1, p. 221-238.