Texto de Madel Luz e Marilene Nascimento *

As práticas integrativas e complementares (PICs), recomendadas por organizações internacionais de saúde (OMS e OPAS) desde a segunda metade do século passado, têm em comum a proposta de acolher e cuidar das pessoas como um todo. Por isto as PICs, quando tratam do sofrimento localizado, tendem também a estimular a pessoa cuidada a perceber tensões e conflitos relacionáveis aos sintomas físicos que apresenta, e a compreender valores, crenças e comportamentos associados a seu modo de conceber e lidar com questões que impactam a sua saúde.

Fortalecer a autonomia dos pacientes e empoderar as pessoas por meio do cuidado de si parece contrariar àqueles que querem manter a população dependente de produtos e serviços de saúde caros, muitas vezes invasivos e iatrogênicos. Afinal, a quem as PICs incomodam? Jargões que as acusam de pseudocientíficas escondem interesses reacionários e forjam uma ideia arcaica que limita o cuidado em saúde ao controle de sintomas ou patologias.

Cuidar da saúde é mais do que isto. A doença não se manifesta apenas no corpo, mas está presente também nas relações familiares, sociais e com o meio ambiente, como têm descrito estudos epidemiológicos e demográficos recentes. Manifesta-se ainda na forma como as pessoas concebem e buscam realizar sua existência no mundo. O ser humano não se reduz a um corpo, muito menos a uma parte dele: é também um conjunto de valores, concepções e crenças, experiências, expectativas, frustrações etc. E a doença que o acomete expressa, para além de alterações biológicas, desarmonias no jeito de andar a vida, tanto pessoal como coletiva. De acordo com experimentações e descobertas das ciências humanas, o adoecimento é também uma forma de exprimir, ou denunciar relações sociais hostis.

Afirmar que o cuidado proposto pelas PICs vai além do controle de sintomas ou alterações nos tecidos ou metabolismo humano significa dizer, em outras palavras, que as práticas integrativas e complementares se apoiam em uma concepção vitalista. O vitalismo em saúde tem raízes que remontam à antiguidade ocidental clássica, bem como antigas tradições médicas não ocidentais, e está sendo retomado com grande expansão no momento pós-moderno, reunindo práticas tradicionais de origem popular, etnológica ou experimental, no estilo científico atual.

Desta perspectiva, as PICs valorizam fortemente estudos científicos, baseados em metodologias de observação sistemática validadas na produção do conhecimento, por entender que a ciência oferece ferramentas estratégicas para guiar a ação humana na saúde, no ambiente, e em outros campos da vida. As PICs valorizam também, na atenção à saúde, a cultura, os sentimentos e comportamentos, e a expressão pessoal do ser humano adoecido, por entender que este é ao mesmo tempo artífice e produto da cultura, entendida como campo de compartilhamento de conhecimentos, crenças, valores, artes, técnicas, costumes, leis, comportamentos etc.

Esta visão ampliada, que considera os pressupostos científicos em suas interfaces com as dimensões biológica, mental, social, cultural, ambiental e espiritual da existência humana no pensar e agir do cuidado em saúde, agrega valor às ciências atuando no cuidado da vida, por ser capaz de acolher o sofrimento humano em sua complexidade e singularidade. Ao lado disto, potencializa a contribuição das PICs na prevenção de doenças e na promoção da saúde.

Há, ainda, uma tentativa de associar as PICs ao desperdício de dinheiro e desrespeito ao cidadão, fruto de concepções estreitas e rígidas da vida e da saúde, especialmente no contexto atual de crise econômica, política, ética e de valores. Crise que gera lucros financeiros expressivos para uma diminuta parcela da população ao custo de sofrimento e vulnerabilidade de um grande contingente de pessoas. Ao buscar os serviços de saúde, essas pessoas se beneficiam da oferta de práticas como a homeopatia, a terapia comunitária integrativa, a acupuntura, as ervas medicinais e a fitoterapia, a meditação, a biodança e tantas outras modalidades de cuidado regulamentadas pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, do Ministério da Saúde, com o aval da Organização Mundial da Saúde.

Contribuir com a medicina convencional na atenção à saúde, e não substitui-la. É com esta proposta que as PICs estão no SUS, e são oferecidas de maneira paralela, complementar ou integrada aos medicamentos, cirurgias e demais procedimentos oferecidos pela medicina convencional. A alta aprovação atestada em pesquisas, por parte de usuários dos serviços, estudantes e um número crescente de profissionais de saúde, faz com que cada vez mais pessoas busquem essa proposta ampliada de cuidado.

E, como toda boa ciência, a concepção que sustenta as PICs, além de propositiva, questiona estratégias de controle do setor da saúde por organizações poderosas, envolvidas com muito dinheiro, público inclusive. Mexer nessa estrutura contraria interesses disfarçados de cuidado. É injusto com a população fazer das PICs cortina de fumaça para uma “ciência” enviesada, em vez de questionar os ralos produzidos no orçamento público e na saúde por quem mais lucra com ela.

 

* Madel Therezinha Luz é graduada em filosofia, tem mestrado em sociologia e doutorado em ciência política. Professora titular aposentada das Universidadse do Estado (UERJ) e Federal (UFRJ) do Rio de Janeiro, colaboradora também na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (UFF). Reúne experiência na sociologia da saúde, com ênfase em saúde coletiva, atuando nos temas das racionalidades médicas, práticas integrativas e complementares em saúde, corpo e práticas de saúde, instituições de saúde , regime de trabalho, produção científica e saúde, biociências e cultura. É lider do Grupo CNPq Racionalidades em Saúde: Sistemas Médicos complexos e Práticas Complementares e integrativas e no GT Abrasco de Racionalidades Médicas e Práticas Integrativas e Complementares em Saúde.
* Marilene Nascimento tem graduação em ciências sociais, mestrado e doutorado em saúde coletiva. É professora associada no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisa na área de ciências sociais e humanas em saúde, com ênfase em medicina tradicional, terapias complementares, práticas integrativas e complementares em saúde, medicina integrativa, racionalidades médicas, educação na saúde, estratégia de saúde da família e no uso racional de medicamentos. É associada ao grupo de pesquisa CNPq Racionalidades em Saúde: Sistemas Médicos Complexos e Terapias Complementares e Integrativas, coordenando ainda o GT Racionalidades Médicas e Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).